MARCIÃO, O ILUMINADO
Os hereges e excomungados quase sempre estão com a verdade. E mesmo que assim não fosse, lhes restaria o mérito de se insurgir corajosamente contra a tirania dos dogmas impostos pela força despótica de falíveis e falazes autoridades humanas, bem como se rebelar contra verdades estabelecidas por tradições superadas pela luz do novo e pela marcha da civilização. Foi assim com Sócrates, Galileu Galilei, Giordano Bruno, Lutero, e o próprio Jesus, que, acusado de herético, blasfemo, insubordinado, mentiroso, enganador, endemoninhado, aliado de Belzebu, louco furioso, pecador, comilão, beberrão, criminoso, conspirador, tumultuador, sectário, perturbador da ordem estabelecida, sedicioso e traidor de sua nação, foi excomungado pela sinagoga, torturado e morto na cruz, tudo porque cumpria a divina missão, que lhe foi dada pelo Pai, de proclamar ao mundo e comunicar aos homens a maior e mais bela de todas as verdades.
O bispo Marcião de Sinope (85-165), também acusado de mentira, blasfêmia e heresia, foi excomungado pela Igreja Romana, no ano de 144, por ter tido a iluminação profética dos males que causaria à humanidade a intromissão do judaísmo na alma e no coração da nascente Igreja Cristã, transformando-a numa seita judaica, cheia de justiça, ira e castigo, conspurcando, assim, a pureza da Esposa Celestial do Messias Prometido, mensageira de paz, amor e perdão. Marcião propunha, nada mais nada menos, o que determina clara e expressamente o Evangelho da Nova Aliança, uma Igreja puramente cristã, expurgada de toda a carnal carga de negatividade contida na tradição judaica e nos escritos do Velho Testamento (VT). Aos cristãos cumpria abandonar a leitura troncha da Divindade feita pelos judeus e se apegar exclusivamente à revelação do Espírito de Amor, Perdão e Misericórdia personificado em Cristo Jesus, o Cordeiro dos Céus, o Príncipe da Paz.
Equivocam-se os críticos e biógrafos de Marcião quando afirmam que esse, que é considerado o primeiro protestante da história da Igreja, incorreu no maniqueísmo politeísta de afirmar a existência de um Deus mau dos judeus contra um Deus bom dos cristãos. Não: só existe um e mesmo Espírito e Pai Criador, que, sendo por definição, infinito e eterno, é inteiramente inalcançável e incognoscível por nós seres humanos, que vivemos na finitude de um mundo material, opaco e limitado. O que muda, e muitas vezes se contradizem, são as leituras, as concepções, que d'Ele os homens fazem ao longo da história. O Espírito se revela (epifanias) e se manifesta (teofanias) de inúmeras formas. Cabe aos homens, pela intuição lógica, pelo verbo e pela razão que o Pai lhes concedeu, apreender, reconhecer e interpretar essas revelações, que lhes permitem, por inferência, criar em sua mente e coração uma imagem, um conceito, uma leitura da Divindade, que, apesar de finito e imperfeito, proporciona-lhe, para seu consolo, uma aproximação cada vez maior da infinita perfeição do Espírito Divino. O que portanto Marcião afirmou, com muita propriedade, foi a indiscutível verdade de que a leitura da Divindade feita pelos judeus, (a que eles deram o nome de Javé, Jeovah, Deus, Adonai, entre outros) é inteiramente contrária e oposta à auto-leitura feita pelo próprio Espírito na pessoa do seu filho Jesus. São inúmeros e incontestáveis os argumentos tanto de ordem lógica quanto de ordem histórica e escritural, que apóiam essa afirmação. Mas só em estudos mais extensivos, e não nesse sucinto esboço, poderemos elencá-los e desenvolvê-los.
Da mesma forma, a Lei, dada aos homens pelo Santo Espírito, é tão infinita e eterna quanto o seu próprio Autor, e por isso, dela nem um til nem uma cedilha será removido até o final dos tempos, como afirmou Jesus. Contudo, a trágica e desastrosa leitura justiceira, racista, irada e vingativa da lei mosaica feita pelos judeus não tem nada a ver com a leitura presidida pelo amor, pelo perdão e pela misericórdia concebida por Jesus. A Lei é a mesma, mas as leituras são totalmente diferentes, senão contrárias e conflitantes. Por isso Ele disse, "Eu não vim revogar a Lei, eu vim completá-la". Ou seja, Jesus trouxe o que faltou para que os judeus fizessem a leitura correta e completa da Lei: o amor incondicional e absoluto que nada julga e tudo perdoa, o Amor do Cordeiro que tirou os pecados do mundo, nos introduziu na graça e nos libertou da Lei.
Em Jerusalém, enquanto confrontou-se com o judaísmo, em seus primeiros anos, a Igreja cresceu estrondosamente. Tivesse sido mantido aquele ritmo e, com certeza, todos os habitantes da terra já seriam cristãos e estariam gozando a paz e as bem-aventuranças do Reino dos Céus. Os judeus daquela época, apavorados com e extinção da religião que dava suporte ideológico, patrimonial e financeiro ao seu povo como nação, partiram para todos os tipos de agressão, desde a prisão e o apedrejamento dos santos, até as conspirações e manobras caluniosas assacadas contra os discípulos e apóstolos que pregavam as Boas Novas da Nova Aliança. A Igreja, apesar da encarniçada perseguição dos judeus, fortalecia-se cada vez mais, conquistando corações e mentes não só entre os próprios judeus, mas também entre gregos e gentios, revelando, desde já, o caráter absolutamente universal de sua divina missão. E o que se pregava - isto está bem claro nas cartas e atos dos apóstolos - era o Evangelho, a mais verdadeira Palavra do Pai que eventualmente era referenciado às escrituras do VT, mas apenas quando se tratava de convencer os judeus de que Jesus era o Messias de que falavam os profetas. O Evangelho era apresentado como a única, exclusiva e suficiente regra de vida e salvação. Nada deveria ser-lhe acrescentado.
Quando a Igreja transferiu-se para Roma, passou a ser perseguida também pelo paganismo politeísta dos poderosos do Império, perseguição que se estendia também aos muitos judeus que ali residiam. Como as dores da perseguição eram comuns, passou-se do confronto a um certo entendimento entre cristãos e judeus, à guisa de amparo mútuo frente à tirania dos césares. Os judeus aproveitaram sem demora a situação para por em prática aquela velha estratégia do "se não podes destruir o teu inimigo, alia-te a ele contra um terceiro, para depois destruí-lo por dentro". Com certeza, entre as muitas conversões sinceras de judeus ao cristianismo, houve também outras tantas falsas e dissimuladas, com o único intuito de se infiltrar na estrutura doutrinária e direcional da Igreja, a fim de transformá-la numa simples seita auxiliar do judaísmo.
Foi aí onde e quando começou a se consolidar o absurdo dogma da continuidade entre o velho (VT) e o Novo Testamento (NT), que transforma a Igreja de Cristo, até hoje, num simples desdobramento do judaísmo, que Jesus tanto combateu, e pelo qual foi combatido até a morte na cruz. A Igreja Católica Romana, então em formação, incorporou ao seu rito e à sua doutrina, usos e costumes, todo o espírito e todas as práticas das tradições judaicas: o sacerdotismo, a ostentosa indumentária ritual, o falancterismo, o templismo, o ritualismo, o liturgismo, o festismo, o literalismo dogmático, a leitura irada e justiceira da Lei, a violência, o ódio e a guerra aos inimigos. O culto racional, espiritual e intimista da fé foi empanado pela interposição de fatores materiais simbólicos, tão caros à religiosidade exibicionista dos judeus: templos imponentes, altares, sacrários (sucedâneos da mosaica arca da aliança), candelabros (menorás), turíbulos (queimadores de incenso), sinos, matracas, entre muitos outros. A maior parte destes, quinze séculos depois, foi abolida pela luminosa Reforma Protestante, que, entretanto, aceitou e deu prosseguimento ao dogma da continuidade entre a antiga e a nova aliança, justamente o fator que mais prejudica a marcha gloriosa da Igreja de Cristo.
Hoje, vinte séculos depois de sua fundação, a Igreja de Cristo ainda claudica sob a pesada carga de judaísmo que lhe foi imposta pela Igreja Romana. O dogma da continuidade entre a Velha e a Nova Aliança tornou-se uma rocha impenetrável e inamovível, onipresente em todas as correntes, seitas e denominações da Cristandade. Seus efeitos daninhos e deletérios são visíveis em todo o histórico elenco de inquisições, julgamentos, excomunhões, torturas, mortes, guerras, perseguições e divisionismos cometidos, não pela santa e espiritual Igreja de Cristo, mas por uma igreja que se tornou carnal e terrena, sob a influência do judaísmo, que a tomou de assalto e nela se instalou desde os primeiros séculos de nossa era. Há dois milênios, o cristianismo geme e sucumbe, enredado nesta contradição de servir a dois senhores que seguem caminhos divergentes e discordantes; de, à força do dogma e da tradição, querer conciliar o inconciliável, viver ao mesmo tempo em mundos opostos. É tempo de os cristãos retomarem a pureza dos primeiros tempos de Jerusalém; de perceberem que este erro milenar de promiscuidade com o judaísmo peia e estorva a gloriosa caminhada da Esposa Celestial; de reconhecer que a voz de Marcião tinha o respaldo da luz divina e era de pura obediência ao Evangelho de Cristo; de retomar os princípios básicos das teses marcionitas e desenvolvê-las em novo patamar, promovendo a ressurreição do verdadeiro cristianismo.
Aos que se perguntam se é possível dizer que, durante todo esse tempo, todos estiveram e continuam errados ou enganados, respondemos: não é a primeira vez que toda a humanidade, só depois de milênios, corrigiu erros no fundamento de seus conhecimentos, de suas ações e de sua fé. Desde que o mundo foi criado até a Revolução Copernicana, no Século XVI, toda a humanidade estava errada ao acreditar que a terra era fixa e que todos os astros, inclusive o sol, girava em torno dela. Esta convicção, baseada literalmente na percepção dos sentidos, era tão forte, que se transformou num dogma, com suposto respaldo bíblico, por conta do qual muitos foram queimados vivos nas fogueiras da “santa” inquisição. Desde vários séculos antes de Cristo, os sábios pré-socráticos desenvolveram a teoria, sistematizada por Aristóteles e acreditada por todos, de que os elementos primordiais formadores da natureza eram a terra, o fogo, a água e o ar. Quem nisso não acreditasse seria considerado alienado mental. Somente no século XIX é que se descobriu que os elementos primordiais não eram esses e sim os átomos, cujo número excede os oitenta. Durante milênios, acreditou-se que os homens eram desiguais porque nasciam desiguais. Só o Iluminismo e a Revolução Francesa, veio confirmar o princípio cristão de que todos os homens nascem e permanecem iguais perante os céus e perante a lei. Durante séculos e milênios, os judeus acreditaram numa concepção equivocada do Pai Celestial, feita à imagem e semelhança de seus instintos carnais. Foi necessário que o Verbo Divino descesse do céu e se fizesse carne para se mostrar a eles e ao resto do mundo em sua verdadeira essência na pessoa de Cristo Jesus. Mesmo assim, até hoje, um grande remanescente de israelitas de dura cerviz e de cristãos equivocados, permanecem nas malhas tenebrosas deste erro secular. É hora de voltarmos à fé arrebatadora dos primeiros discípulos e restaurarmos a pureza impetuosa dos primeiros anos do Corpo de Cristo a que pertencemos.
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